Prof. Euzébio Guimarães Barbosa - UFRN
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O legado de Alexander Fleming ecoou profundamente, inspirando pesquisadores em todo o globo em sua busca por organismos produtores de moléculas com utilidade clínica. Nos anos 1960, cientistas italianos se destacaram ao identificar uma bactéria com o notável potencial de produzir um antibiótico altamente eficaz no combate ao câncer, a Daunorrubicina. Pesquisadores franceses também embarcaram na mesma jornada, identificando essa mesma molécula simultaneamente. O nome Daunorrubicina presta uma homenagem à antiga tribo Dauni que outrora habitou a região, ao mesmo tempo em que evoca a palavra "rubis" em francês, enfatizando a notável coloração rubi que distingue essa substância originada do Streptomyces peucetius. Além disso, essa molécula exibe propriedades intrigantes, assemelhando-se a um indicador de pH, pois sua coloração se transforma em resposta às variações de acidez e alcalinidade quando presente em uma solução.
Um composto químico, com uma pequena variação no esqueleto da Daunorrubicina - adicionando apenas uma hidroxila à sua estrutura - foi isolado do mesmo tipo de bactérias. Essa sutil modificação estrutural revelou ter um impacto imenso na atividade antitumoral. Em testes clínicos conduzidos na época, sua eficácia contra tumores sólidos se mostrou consideravelmente superior. Inicialmente foi batizada de Adriamicina, em homenagem ao Mar Adriático, essa denominação mais tarde foi ajustada para Doxorrubicina, de acordo com as regulamentações em vigor. Entretanto, surgiu um desafio significativo. A bactéria, na maioria das vezes, não produzia quantidades substanciais de Doxorrubicina, preferindo finalizar o processo biossintético na Daunorrubicina. A criatividade aplicada às fermentações superou esse obstáculo.
De maneira geral, a Doxorrubicina é um agente amplamente utilizado no tratamento de tumores sólidos em pacientes adultos e pediátricos. Ela demonstrou eficácia no tratamento de sarcomas de tecidos moles e ósseos, bem como no combate a cânceres de mama, ovário, bexiga e tireoide. Além disso, a substância é empregada no tratamento de leucemia linfoblástica aguda, leucemia mieloblástica aguda, linfoma de Hodgkin e câncer de pulmão de pequenas células.
A Doxorrubicina é um dos agentes mais amplamente utilizados dentro da classe de compostos conhecidos como Antraciclinas. Devido à coloração desses compostos, o tratamento do câncer com essa classe é frequentemente referido como "quimioterapia vermelha".
Mecanismo de ação da Doxorrubicina
O mecanismo de ação da Doxorrubicina não é completamente compreendido, mas sabemos que ela interage com o DNA, intercalando-se entre as suas bases e afetando a atividade da Topoisomerase Tipo II. Essas enzimas desempenham um papel vital na regulação da estrutura do material genético durante os processos celulares, induzindo quebras temporárias na dupla hélice do DNA. As Topoisomerases Tipo II têm a capacidade de interconverter diferentes estruturas topológicasdo DNA, o que envolve a criação de uma quebra temporária na fita dupla, permitindo o transporte de uma dupla hélice separada e, posteriormente, a selagem da quebra.
As Topoisomerases Tipo II são enzimas essenciais, embora inerentemente perigosas, pois desencadeiam quebras de DNA de fita dupla como parte de seu mecanismo de ação. Manter um equilíbrio delicado dos complexos de clivagem é fundamental para preservar a integridade do genoma. Em condições normais, esses complexos são de curta duração e reversíveis. No entanto, compostos que perturbam esses complexos de clivagem têm graves consequências.
A Doxorrubicina é um veneno da Topoisomerase II, aumentando os níveis de complexos de clivagem da enzima e do DNA. O termo "veneno" foi originalmente aplicado a essa substância devido à sua capacidade de transformar a enzima em uma toxina celular. Quando os níveis de complexos de clivagem aumentam, as células morrem porque os intermediários transitórios de clivagem de DNA não podem mais ser religados pela Topoisomerase II. O mecanismo que torna a Topoisomerase II incapaz de selar novamente as quebras de DNA ainda não foi totalmente definido, mas pode envolver interações diretas da Doxorrubicina com a enzima e o DNA.
Sabe-se, no entanto, que esse fármaco pode causar mutações e aberrações cromossômicas, levando à morte celular quando as quebras geradas pela Topoisomerase II se acumulam na célula.
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